Aposentados descobrem débitos automáticos sem autorização; duas empresas são alvos de mais de 15 mil processos cada uma
24/05/2025
(Foto: Reprodução) Diferente do que aconteceu na fraude do INSS, os descontos não são feitos na folha de pagamento, mas direto na conta bancária. As empresas que aparecem no extrato são Paulista Serviços e Aspecir, que afirmam que os descontos são autorizados pelos clientes, que negam qualquer autorização. Aposentados descobrem débitos automáticos sem autorização
Em 2024, o aposentado Armando Quintanilha Boechat notou descontos estranhos na sua aposentadoria e procurou o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Ele já tinha perdido mais de R$ 1 mil desde julho de 2023.
A explicação que o aposentado buscava há um ano poderia estar nas notícias sobre a fraude no INSS, escândalo que veio à tona em abril de 2025 e afetou milhões de beneficiários — mas não foi isso que aconteceu.
💸 No caso de Armando, os descontos não eram feitos na folha de pagamento, mas em débito automático, depois que a aposentadoria caía na sua conta bancária.
Aspecir fez 13 descontos no valor de R$ 56,20 entre dezembro de 2023 e dezembro de 2024
Reprodução
Além disso, os descontos não estavam descritos no extrato como "taxa de contribuição associativa", e os nomes das empresas que apareciam no débito em conta — Paulista Serviços e Aspecir — não estão entre os alvos da operação recente da Polícia Federal (PF).
A mensagem de notificação do INSS, que o aposentado recebeu há alguns dias, confirmou suas suspeitas: ele não foi uma das vítimas da fraude.
🤔 Mas, o que explica os descontos indevidos na sua conta? Essa é a pergunta que está levando muitos à Justiça para questionar os débitos em nome das duas empresas.
A Paulista Serviços, ou Pserv, é alvo de mais de 15 mil ações na Justiça de 1º grau e nos juizados especiais, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já as três empresas que formam o Grupo Aspecir somam 20.777 processos. Só a Aspecir Previdência tem 14.042 ações.
Pserv fez quatro descontos no valor de R$ 76,90 entre julho e outubro de 2023
Reprodução
De um universo de mais de 1 milhão de empresas, essas duas estão entre as 200 com mais processos em andamento no Brasil, segundo o CNJ. O órgão não forneceu a lista completa.
As empresas admitem que a principal queixa é de débitos automáticos em conta-corrente, mas afirmam que os descontos são autorizados pelos clientes, mediante documentos assinados ou gravações telefônicas.
Infográfico - Aposentado relata débito automático irregular em conta bancária
Arte/g1
O g1 identificou ao menos 20 ações em que beneficiários reclamam de descontos indevidos e não autorizados em suas contas e ouviu dois aposentados que afirmam ter tido débitos sem autorização. Também foram acessadas duas sentenças judiciais em que as empresas foram condenadas, em primeira instância, a ressarcir os valores. Muitos processos são recentes e ainda estão em andamento.
Em geral, os reclamantes dizem que nem mesmo sabem quais serviços ou produtos teriam contratado. Também não conseguem cancelar os descontos futuros, que variam entre R$ 30 e R$ 90, porque eles são lançados mês a mês.
O que dizem as empresas
Em nota, a Paulista Serviços disse que atua como agente de recebimentos e pagamentos e é contratada por outras empresas para fazer a cobrança. “Não comercializamos produtos ou serviços diretamente ao consumidor final e não nos apropriamos dos valores debitados, atuando apenas como facilitadores do processo de pagamento”, justificou.
O Grupo Aspecir afirmou que “todas as adesões a produtos e autorizações para débito em conta são formalizadas mediante documentos assinados ou gravações telefônicas auditadas”, conforme as normas do Banco Central (BC) e da Superintendência de Seguros Privados (Susep).
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A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que, diante das reclamações de clientes, as instituições bloqueiam de imediato o débito futuro e realiza as tratativas para solução e esclarecimento junto às empresas.
O INSS não respondeu às perguntas e pedidos de esclarecimentos feitos pela reportagem.
MP questiona empresa e bancos
Uma notícia de fato relatada ao Ministério Público do Estado de São Paulo levou o órgão a investigar a empresa Paulista Serviços. O inquérito civil foi instaurado em setembro de 2024 pelo promotor de justiça do consumidor, Denilson de Souza Freitas.
Um dos principais questionamentos do promotor é quanto à verdadeira identificação do credor no extrato da conta bancária. Isso porque, embora apareça o nome da Pserv, a empresa alega que apenas está prestando serviço de cobrança para outras empresas que a contrataram.
De acordo com a reclamação que motivou a investigação do MP, a consumidora tinha descontos mensais de R$ 59,90 em sua conta no Itaú, em nome da Pserv, mas havia outras duas empresas envolvidas no negócio: a ZS Seguros Serviços Financeiros e a Telefoco Barra Consultoria e Intermediação de Negócios.
O Itaú disse que segue integralmente as diretrizes estabelecidas pelo BC para autorização e cancelamento de débitos em contas bancárias e que envia avisos para seus clientes sobre os descontos lançados na conta.
Procurada pelo g1, a ZS informou que, “assim como a Pserv, atua exclusivamente como intermediária tecnológica no processamento de pagamentos”, viabilizando transações financeiras para outras empresas que efetivamente comercializam o serviço ou produto.
Na prática, uma empresa vende um serviço e contrata a ZS para fazer a cobrança. Esta, por sua vez, contrata a Pserv, que é o nome que aparece no extrato do consumidor. No fim das contas, o nome da empresa que teria fornecido o serviço é omitido.
Foi isso que aconteceu com Armando. Somente depois que entrou em contato com a Pserv para cobrar o estorno do seu dinheiro foi que o aposentado descobriu o nome da empresa SP Gestão de Negócios em Telemedicina.
O aposentado Armando Boechat teve mais de R$ 1 mil debitados da sua conta bancária.
Arquivo Pessoal
Ele afirma que também não reconhece qualquer acordo com essa empresa. “Eu nunca fiz nenhuma negociação bancária para desconto em débito automático”, disse.
De acordo com o promotor Denilson Freitas, “é necessário verificar a licitude das cobranças e a correta informação nos extratos bancários sobre o fornecedor credor, bem como eventuais omissões que prejudiquem os consumidores”.
Empresas não apresentam provas à Justiça
Ao notar os débitos indevidos, Armando procurou seu banco, o Bradesco, para entender o que estava acontecendo. Em resposta por e-mail, foi informado que, segundo a Pserv, “a contratação do produto/serviço ocorreu de forma regular, por meio de contato telefônico firmado entre as partes”.
Armando, então, solicitou à Pserv, à SP Gestão e ao Grupo Aspecir, que também fez débitos automáticos em sua conta, que comprovassem o contratação. Ou seja, que enviassem a gravação da chamada telefônica ou um documento que o aposentado tenha assinado. As empresas não mostraram o contrato, mas devolveram o dinheiro debitado ao longo dos meses.
Ao g1, o Bradesco informou que segue os protocolos do BC para débitos em conta e que avisa aos clientes sobre descontos.
Procurada, a SP Gestão não se manifestou. Já a Pserv reafirmou, sem apresentar a gravação, que “a adesão foi realizada por meio de ligação telefônica registrada, em que o próprio cliente forneceu voluntariamente suas informações pessoais e bancárias”.
A Aspecir também disse que “todas as adesões a produtos e autorizações para débito em conta são formalizadas mediante documentos assinados ou gravações telefônicas”.
Porém, sentenças judiciais obtidas pelo g1 mostram que a Aspecir não apresentou os contratos devidamente assinados por quem moveu ações na Justiça.
Em uma decisão no Tribunal de Justiça do Maranhão, o juiz destacou que “o certificado anexado não consta assinatura”. Em outra sentença, no Rio Grande do Norte, o juiz disse que “não foi acostado instrumento contratual”.
Nos dois casos, a empresa teve que ressarcir as pessoas e pagar danos morais.
Segundo a Aspecir, sempre que identifica qualquer descontentamento por parte do consumidor ou falha na execução da venda, adota medidas corretivas, como descredenciamento de corretores que descumpriram os protocolos de atendimento e reforço na auditoria de processos de venda.
Contrato com dados de homônima 9 anos mais jovem
Ana Lúcia da Silva moveu ação contra débito irregular e descobriu homônima.
Arte/g1
No processo movido pela aposentada Ana Lúcia da Silva contra a Pserv, que está em andamento, a empresa informou à Justiça que o débito era feito para a Clube Blue.
Os descontos na conta da aposentada ocorreram entre abril e agosto de 2023, no valor de R$ 59,90. Só foram suspensos depois que ela iniciou a ação judicial.
A Clube Blue oferece serviços como telemedicina, assistência funerária e plano odontológico, mas Ana Lúcia disse que nunca fez contrato com a empresa.
Foi quando a defesa da aposentada pediu a prova da contratação do serviço que o caso ficou mais nebuloso. Segundo o advogado Pedro Zaniato, a proposta de adesão tinha o nome da sua cliente, mas os dados de filiação, data de nascimento, CPF e endereço eram de outra pessoa que também se chamava Ana Lúcia. A foto no documento de identidade é de uma mulher nove anos mais jovem.
Em nota, a Clube Blue afirmou que suas vendas são auditadas e confirmadas pelo cliente. “Seguimos um roteiro profissional, e gravamos 100% das ligações, com o conhecimento do contratante”, alegou.
Ana Lúcia, que também foi vítima da fraude do INSS, defende que os descontos indevidos por débito automático também sejam investigados. E faz um alerta aos aposentados:
“Acompanhe sempre os dados de vocês na conta do INSS, senão você nunca vai descobrir. E procure seus direitos, porque ninguém pode invadir sua conta bancária e fazer um desconto que você não autorizou.”